Isis Flora (Gerente pedagógica da Rede Cruzada)
“O viver humano fez de suas bases de impressão a natureza.
Toda a cultura de se guiar, todas as noções de espacialidade,
geografia, habitação, alimentação, festejos e ritos, todo o viver
no mundo e todos os instrumentos e técnicas os gestos e
linguagens corporais têm suas bases na natureza(..)
Portanto, na fluência imaginária,
cultura é natureza e natureza é cultura”
Gandhy Piorski, p.31
Em 2020, a Rede Cruzada iniciou uma jornada de aprendizagem com as Educadoras que tinha como objetivo desemparedar¹ cada uma de nós. Todas as pessoas viviam um momento de fechamento em seus lares devido ao avanço da pandemia. Aproveitamos esta impossibilidade da presença física para, de forma online, individual e coletiva, mergulhar em nossas infâncias. Percorremos espaços esquecidos que estavam escondidos, soterrados por várias camadas de vida adulta. Regras, medos e cuidados escondiam essas memórias. Educadoras relataram que em suas infâncias que viviam correndo na rua, escorregando em morros, escalando encostas e se lambuzando na terra e na lama, brincavam de fazer comidinha com terra e gravetos.
Após esta imersão em nossas memórias, seguimos para olhar as infâncias das crianças que estavam com a gente, em suas famílias e nas nossas unidades. A reflexão nos apontou que estávamos focadas demais em aspectos comoa segurança delas e com a higiene. Refletimos sobre o que temos chamado de sujeira e o que são marcas do vivido, ricas experiências; fizemos um novo retorno no tempo para entender como o convívio com a natureza nos curou, ajudou e nos conectou com a terra, com o aprendizado que vem da terra e com os saberes presentes na sabedoria ancestral. Lembramos dos chás que nossas avós nos davam, dos banhos de cheiro e dos remédios caseiros feitos de plantas e ervas para curar os machucados. Pensamos sobre o que nos induzia a conduzir as crianças que vivem aqui na grande cidade a se afastarem e viverem em espaços antissépticos, cheios de paredes e de “cuidados”. As primeiras palavras que surgiram foram medo da violência, insegurança, necessidade de controle e “proteção”…
No momento desta imersão, nossa reflexão caminhou mais um pouco e trouxe à tona a seguinte pergunta: Como garantir segurança e ao mesmo tempo deixar as crianças viverem, estarem com a natureza? Como agregar a investigação e seus riscos à prática pedagógica do chão de escola?
Chegamos no momento do nosso ‘auto’ emparedamento, esse comportamento interno que nos deixa fechados e distantes dos elementos do mundo natural. Levamos nossas equipes para se reconectarem com o verde, dentro e fora de nossas unidades. Sentir a brisa, o sol, a terra, a grama, brincar, dar cambalhota e estrelinha naquela imensidão de tons de verde. Vencemos e continuamos vencendo a cada dia, o primeiro obstáculo que é o desemparedamento interno. Nos pusemos no cotidiano a caminho de uma dissolução das paredes imaginárias que nos aprisionam e ao nosso fazer pedagógico.
Conforme cada uma de nós foi se reconectando com a natureza, a coragem veio nos enchendo de vontade de levar as crianças e adolescentes para viverem essas experiências.
As crianças e adolescentes do contraturno, no Projeto Deskobrir, foram os primeiros que chegaram se conectando com os nossos quintais. Com a mão na terra fizeram uma horta que não para de crescer e de trazer vida para a unidade do Shopping Nova América. Na sequência, visitaram o terraço verde localizado no teto do Shopping e foram visitar a Floresta da Tijuca.
As crianças da Educação Infantil foram chegando devagar com suas educadoras. Brincar para além dos parquinhos foi e continua sendo uma conquista diária. Hoje, exploram cada cantinho, cavam a terra, colocam água e formam poças, rios, fazem lama, plantam e fazem comidinha. Quem está ali, com o olhar atento é capaz de perceber a delicada aprendizagem que está sendo tecida a cada instante. Observar onde tem verde, árvore e planta, onde tem terra e grama, pé na terra, no chão e a conexão com os saberes ancestrais tem guiado o nosso fazer pedagógico.
Adentramos em um lindo caminho sem volta. Agora, é “quebrar” o piso de cerâmica, “quebrar” o cimento e deixar a terra surgir. Nosso lema diário tem sido: Mais tempo fora de sala para trazer os elementos naturais para as nossas vivências pedagógicas.
Sentir o sol em nossos corpos, a chuva, os ventos e brisas, experimentar a sombra das árvores. Experiências únicas e necessárias, pois somos natureza, sem essa conexão podemos nos distanciar da natureza e não dar a devida importância para o fato de que precisamos viver em harmonia com todas as outras formas de vida existentes na Terra. Nossos planejamentos seguem os cinco campos de experiência da BNCC e os respectivos objetivos por faixa etária. As intenções ao criar as atividades são conversadas e refletidas com as pedagogas responsáveis por cada unidade e juntas, pedagogas e educadoras, montam planejamentos que possibilitam o autoconhecimento, o conhecimento do outro e de tudo que se encontra ao redor, atividades que tragam a diversidade para dentro dos nossos espaços através da literatura, que permitam para a criança experimentar movimentos corporais de forma livre e direcionada, explorar as transformações percebidas ao fazer experimentos como molhar a terra, o barro, colocar objetos na água, observar as formas e cores presentes na natureza entre tantas possibilidades de aprender de forma significativa.
No próximo texto, vamos contar um pouco mais sobre o trabalho pedagógico realizado nesses primeiros meses do ano. Até maio!
¹ Este termo foi aprendido nos estudos e escritos de Léa Tiriba, pesquisadora da relação da criança com a natureza.
PIORSKI, Gandhy. Brinquedos do chão: a natureza, o imaginário e o brincar~. São Paulo: Peirópolis, 2016.
Isis Flora é mestre em educação e psicopedagoga. Atua como gerente pedagógica da Rede Cruzada.