Isis Flora e Marianna Freitas

Esses achados cotidianos das crianças, muitas vezes frutos do desperdício ou mesmo da cegueira do mundo adulto, são pequenos tesouros como pedras, folhas, pequenos animais encontrados no parque embaixo de uma tábua…Tesouros imperceptíveis para nossos olhos adultos, mas que constituem um tesouro ao mesmo tempo material e imaterial da infância, pois esses elementos são constituidores da cultura da infância.

RIBEIRO, 2022 p. 160-161

O brincar tem sido assunto constante em nossas rodas de conversas. Essas rodas acontecem nas brechas conquistadas pela iniciativa do corpo pedagógico em nossas unidades. Ao refletir com o grupo de educadores sobre o brincar, sobre o lugar do brincar em nosso planejamento e no fluxo de atividades, caminhamos para que o lúdico esteja presente em todos os momentos do dia. A questão sobre a qual estamos nos debruçando neste momento é a compreensão sobre que brincar é esse? Que brincar desejamos? Quais as nossas intenções com os brinquedos oferecidos? Vamos oferecer cada vez mais materiais estruturados ou não estruturados? 

Optamos por descrever duas situações vividas no chão de nossas escolas e, juntas/juntos vamos pensar sobre as possibilidades vividas em cada uma delas.

A primeira cena é a seguinte: uma sala com um armário com alguns brinquedos comuns, entre eles um castelo com peças coloridas encaixadas umas nas outras, três bonecas, alguns carrinhos, panelinhas e bonecos de plástico de animais. No restante da sala há um tatame, uma prateleira com livros, uma caixa para sapatos e outros itens comuns de uma sala de aula. Ao entrar na sala todas as crianças, sem exceção, correm em direção ao armário de brinquedos e pegam aqueles que lhes interessam, uma pega uma boneca, outra uns dois ou três carrinhos, outra tenta pegar a maior quantidade de brinquedos que consegue carregar com as suas mãos. Deste momento em diante temos duas possibilidades mais óbvias sobre o desenrolar: uma é que cada criança busque um cantinho da sala para brincar com o “seu” brinquedo, outra é que uma criança se interesse pelo brinquedo da outra e a partir daí temos um conflito de disputa por aquele objeto desejado por ambas. Estas, normalmente, são as possibilidades que um brinquedo estruturado nos oferece: a utilidade daquele objeto já está encerrada em sua forma, uma boneca serve para ser um bebê, um carrinho serve para andar, mover para lá e pra cá, panelinhas servem para fazer comidinha e os animais… bom, animais são animais e dali podemos brincar de floresta, de fazenda, sítio o que for, mas ainda assim, seriam animais.

A segunda cena consiste em uma caixa colocada no jardim para as crianças explorarem. Dentro da caixa encontramos: peneira, funil, colher, panela, tecido, materiais naturais como folhas, sementes, pedras, entre outros objetos. As crianças chegam para reconhecer o espaço ofertado ao brincar e duas se interessam pela caixa, começam a olhar o que tem dentro. Uma delas pega uma peneira e uma colher e segue para um espaço de terra e começa a peneirar a terra. Outra criança que havia pegado o tecido, chega perto e começa a organizar o que parece ser uma mesa para a refeição, procura folhas e as coloca sobre o tecido como se fossem pratos. Enquanto essa cena acontece, vemos outras duas crianças construindo uma pequena “cidade” próximo as formigas que vivem pelo jardim, usam terra, pedras, folhas e água. Juntas, essas duas crianças, elaboram seus projetos e com negociações partem para executar a “cidade das formigas”. Por fim, percebemos que uma das crianças pegou a panela e uma colher de pau, virou a panela e começou a bater e, assim, tivemos um baterista em nosso brincar.  Esta cena nos mostra que o brincar com objetos não estruturados permite uma gama de possibilidades para as crianças na relação delas com o objeto e entre elas. Os materiais não estruturados estão ali com múltiplas possibilidades e caminhos a serem seguidos.

A criação e descrição das cenas não tem por objetivo gerar uma narrativa em que pareça que as crianças não vivenciam conflitos e disputas diante dos objetos não estruturados. Não se trata de colocar brinquedos não estruturados contra brinquedos estruturados. A intenção é reforçar que dependendo da intenção e do objeto oferecido as possibilidades das crianças em exercer a imaginação e criatividade tendem a variar. 

Ter a possibilidade de oferecer para as crianças uma caixa com objetos variados, permitir que elas explorem os quintais encontrando mais tesouros, mexam na terra, na lama, essas oportunidades possibilitam a ampliação das sensações e a imaginação delas. “Uma criança melada de lama, que se regala do barro, experimenta, gradualmente, as imagens iniciais da aflição, do sucumbir, do engolfado, pois, aos poucos, o barro seca, suga e esquenta-lhe a pele (PIROSKI, Gandhy, 2016, p.122)” permitindo sensações que ela não viveria fazendo uso de brinquedos prontos e com uma função, dentro do brincar, pré definida.

Todos os brinquedos estimulam o brincar e suas interações, mas existem possibilidades de alargar as construções do eu, do outro e do mundo ao experimentar diferentes materiais. Acreditamos que por meio dos elementos não estruturados as crianças podem fazer do brincar o seu próprio método de pesquisa. O novo costuma despertar neles a curiosidade e o desejo de testar todas as possibilidades daquele objeto, rompendo as barreiras do que já é conhecido, transformando o ato de brincar em um convite para a invenção. É através do mistério que se fazem as grandes novidades! 

 

Referência: 

PIROSKI, Gandhy. Brinquedos do chão: a natureza, o imaginário e o brincar. São Paulo: Peirópolis, 2016.

RIBEIRO, Bruna. Pedagogia das miudezas: saberes necessários a uma pedagogia que escuta. São Carlos: Pedro & João Editores, 2022.

Isis Flora é mestre em educação e psicopedagoga. Atua como gerente pedagógica da Rede Cruzada.

Marianna Freitas é cientista social, educadora praticante e pesquisadora de pedagogias do livre brincar. Atualmente atua como pedagoga na unidade Plantando o Amanhã – SNA da Rede Cruzada.